Há dias fui tirar o cartão do cidadão. Não era para o fazer, mas teve mesmo de ser naquele dia. Estava um dia estranhamente calmo no Registo Civil, um dia que provocou, porém, um vendaval dentro de mim. Em boa verdade, sabia que esse dia chegaria, mas não estava de todo preparada para o enfrentar. Quando, naquele dia, a funcionária me pediu que olhasse em frente para a câmara fotográfica não esperava que esse momento me levasse a um caminho tão obscuro...a uma viagem à pessoa que fui e à pessoa que sou. E olhei em frente, como se me olhasse ao espelho e vi, pela primeira vez que quis, de facto, ver, que o tempo passou por mim, que já não sou quem um dia fui e que estou longe de ser quem me prometi que seria. Olhei perplexa para o ecrã e o meu olhar denunciou o meu espanto perante o rosto que ali via refletido. Este embaraço foi percecionado pela funcionária, que, piedosamente e quase me pedindo desculpa, me questionou se pretendia que tirasse uma nova foto. Respondi-lhe que não valia a pena, ficaria assim, as coisas são o que são. Queria apenas sair dali, fugir daquele momento revelador, que me obrigou a ver-me mais do que apenas olhar-me, por fora, mas sobretudo por dentro.
Quando cheguei ao meu carro, abateu-se um silêncio desesperante. Senti-me como se visualizasse um filme, uma película que me mostrava episódios de uma vida cheia de encruzilhadas e de infortúnios, uma saga de fracassos e de retrocessos. Não queria acreditar que me tinha abandonado tanto...que me tinha resignado tanto...que me tinha afastado tanto de mim. Tornei-me uma tecnocrata da vida. E lembrei-me do tempo em que, no auge da minha juventude, olhava a noite da janela do meu quarto e acreditava que conquistaria tudo o que desejava conquistar, que seria feliz, que cuidaria de mim e daqueles que me rodeiam. O meu destino não se cumpriu e, hoje, do alto dos meus 37 anos, daria tudo para voltar ao momento em que as minhas escolhas poderiam ter feito a diferença, ainda que tenha feito tudo certo, veja-se a ironia. Mas o passado, para bem ou para o mal, é irremediável. Talvez por isso, hoje ecoe em mim um grito silenciado de revolta, revolta por ter realizado um esforço titânico ao longo do meu percurso e que esse esforço se tenha traduzido em tão pouco. Não escrevi uma história bonita para mim, como me prometi. Não tomei conta de mim, como me prometi. Não realizei os meus sonhos, como me prometi. Desertei-me completamente e não me consigo perdoar por isso.
Percebemos que estamos em cinzas quando um imenso inverno se abate sobre nós. Quando um dia são apenas mais 24h, todas iguais às 24 anteriores. Quando vivemos em piloto automático, como se fossemos um robô programado para cumprir as obrigações que nos são destinadas. Quando não nos permitimos alimentar qualquer esperança de que amanhã seja melhor. Quando já não temos mais forças para segurar as portadas e impedir que este imenso furacão nos invada ainda mais, ganhando força a cada dia que passa. Quando compreendemos que somos invisíveis e nos sentimos sozinhos ainda que estejamos quase sempre acompanhados. Quando já não conseguimos ver o copo meio cheio. Quando desistimos do futuro e procuramos apenas suportar o presente. Nesses momentos, em que nos confrontamos com nós próprios e não nos reconhecemos, nesses momentos...de uma perturbação dilacerante...compreendemos que não vivemos, apenas duramos.